Português: Valor documental da cantiga de escárnio e maldizer

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Valor documental da cantiga de escárnio e maldizer

            . Artístico: decoração, iluminuras.

. Histórico e social:       - a entrega dos castelos ao conde de Bolonha;
- a cruzada da Balteira;
- o escândalo das amas tecedeiras;
- as ambições dos pobres jograis, que até podiam ter talento para trovar, mas que os trovadores não permitiam e gozavam;
- a traição dos cavaleiros na guerra de Granada;
- a corrupção do clero (abades, bispos, papas);
- as soldadeiras;
- o amor cortês;
- o uso do latim macarrónico pelos padres;
- as relações entre fidalgos e plebeus;
- as disputas entre trovadores e jograis.
            Em suma, o que esta poesia retrata é a decadência da sociedade em geral.

            De facto, as cantigas de escárnio e maldizer têm um enorme valor documental, na medida em que constituem um vasto panorama crítico da sociedade medieval portuguesa nos aspectos político-religioso, social e cultural.
            Assim, no domínio político-religioso, assume especial relevo a denúncia da condenável actuação das autoridades eclesiásticas, que excomungam os alcaides que se mantêm fiéis à palavra dada, aquando da deposição de D. Sancho II por D. Afonso III. É a célebre questão da "entrega dos Castelos ao conde de Bolonha", que alguns alcaides recusaram terminantemente, por se sentirem vinculados pelo juramento de fidelidade e dever de vassalagem a D. Sancho II, enquanto este vivesse. Trata este tema a conhecida cantiga "Meu senhor arcebispo, and'eu escomungado", de Diego Pezelho.
            É, talvez, no aspecto social que a nossa sátira medieval é mais rica. Denuncia-se nela o eterno problema do "desconcerto" do mundo, em que a falsidade, a mentira e, de um modo geral, a injustiça parecem triunfar, tal é a "desordem" em que a sociedade se atolou. A cantiga "Vej' eu as gentes andar revolvendo", de Pero Mafaldo, é um bom exemplo da inversão de valores a que se tinha chegado: os mentirosos e desleais viam a sua reputação aumentar e, pelo contrário, os honestos e cumpridores apenas somavam fracassos. Então, ironicamente, o sujeito conclui que a melhor maneira de triunfar na vida é passar a mentir a toda a gente, "ao amigo e ao senhor".
            Também o "cavaleiro famélico" da cantiga "Quem a sesta quiser dormir", de Pero da Ponte, denuncia a grave crise por que passavam os infanções, em resultado das transformações sociais e políticas da época, que favoreciam a burguesia em detrimento da nobreza, sobretudo depois da conquista definitiva do Algarve, no reinado de D. Afonso III.
            No aspecto cultural, é sobejamente conhecida a ridicularização do convencionalismo do amor cortês, na conhecida cantiga "Roi Queimado morreu com amor", de Pero Garcia Burgalês, em que se critica o fingimento da morte de amor "por ua dona". Também na cantiga "Ai! dona fea, fostes-vos queixar", Joam Garcia de Guilhade elogia uma "dona fea, velha e sandia", ridicularizando deste modo o lugar-comum da beleza etérea da mulher amada, a "sem par", que os trovadores sempre idolatravam nas suas cantigas de amor.
            Podemos, então, concluir que, para além do seu inegável valor literário, as cantigas de escárnio e maldizer têm um enorme valor documental. Através da crítica, da ironia e do tom pejorativo, elas constituem um vasto e variado panorama dos males da nossa sociedade medieval: os escândalos sociais (as amas e tecedeiras), a  cultura (a ridicularização do amor cortês e da imagem da mulher ideal), a cumplicidade entre a política e a religião (a entrega dos castelos ao conde de Bolonha), a decadência da nobreza, o desconcerto do mundo, o privilégio da aparência, a imoralidade e a dificuldade em cumprir projectos ou promessas (a cruzada da Balteira), a covardia (a traição dos cavaleiros na Guerra de Granada), etc. Estas cantigas constituem, realmente, as raízes de um dos mais ricos filões do nosso oiro literário, que terá continuadores tão ilustres como Gil Vicente, Camões ("Esparsa ao desconcerto do mundo" e alguns passos d' Os Lusíadas), António José da Silva, o Judeu, e Nicolau Tolentino (no século XVIII), Guerra Junqueiro e Gomes Leal (no século XIX) e, no século XX, Alexandre O'Neill, entre outros.

Sem comentários :

Enviar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...