Português: Análise da cantiga "Que soidade de mha senhor ei"

terça-feira, 21 de novembro de 2017

Análise da cantiga "Que soidade de mha senhor ei"

. Assunto: o trovador exprime a saudade e o desespero que sente face à ausência da "senhor", de tal forma que o levará à morte se não a vir rapidamente.


. Tema: a saudade pela "senhor".


. Estrutura interna

. 1.ª parte (vv. 1-6) - O trovador exprime:
- a saudade provocada pela ausência da amada;
- a recordação dela: "qual a vi", "que bem a oí falar", "quanto ben dela sei";
- refrão: o pedido a Deus para a ver.

. 2.ª parte (vv. 7-12) - Consequências de não ver a amada:
- a loucura
        ou
- a morte.

. 3.ª parte (vv. 13-20) - Exaltação das qualidades da mulher amada ("non lhi fez par", "fez das melhores melhor") e confissão da certeza de que morrerá se não vir rapidamente a "senhor" (dependência total em relação à mulher amada).


. Caracterização da "senhor":
- boas maneiras (fala bem);
- formosa;
- não há outra igual;
- ideal;
- perfeita;
- divinizada;
- altiva, distante, indiferente aos sentimentos do trovador (v. 7);
- inacessível;
- encontra-se ausente.


. Caracterização do trovador:
- recorda a "senhor" com saudade;
- sofre por ela (coita de amor);
- está triste;
- apaixonado;
- suplica a Deus que lhe permita voltar a vê-la;
- enlouquecerá e/ou morrerá se não voltar a vê-la;
- esperançado em voltar a vê-la;
- ansioso;
- desesperado;
- totalmente submetido à "senhor";
- comedido na expressão do sentimento amoroso (mesura);
- sente dor;
- revoltado;
- encontra-se na fase de fenhedor, pois suspira e pede a Deus que lhe permita vê-la.


NOTAS:

            a) Amor associado à saudade: o trovador ama a "senhor" e basta um dia sem a ver para morrer de saudades.

            b) O "ensandecer" e a morte de amor: o amor é considerado um sentimento que pode levar à loucura e mesmo à morte.

            Os nossos trovadores sofrem a "coita de amor". Não lhes basta cantar as perfeições idealizadas da mulher, a aspiração ao inacessível não os satisfaz. O amor é entendido como um sentimento que esvazia a vida de sentido e leva à loucura e à "morte".
            A cantiga de amor galaico-portuguesa é um repetir monótono da necessidade vital de ver a "senhor"; daí que a realidade e a ficção acabem por se entrelaçar e aquela, por vezes, sobrepor-se a esta. Todavia, a afirmação da "morte de amor", repetida vezes sem conta, torna-se um lugar-comum que destrói a sinceridade, se presta ao ridículo e à sátira.


. Concepção do amor (amor cortês):

. A "senhor" é um ser superior a quem o trovador presta vassalagem amorosa. Ela é a suserana do coração dele ("todo en seu poder ten"), que enlouquecerá ou morrerá se não a vir.

. A relação amorosa caracteriza-se, portanto, pela admiração e pela submissão do trovador face à dona.

. Ao contrário da cantiga de amigo, o amor não tende, por princípio, à união sexual; é, em geral, fingimento e convenção. Apresenta-se como um ideal a atingir, como um estado de espírito que deve ser alimentado. É uma aspiração sem correspondência, em que se invertem as relações de domínio e de vassalagem:


              O trovador vê-se atingido por um amor fatal, porque, um dia, viu uma formosa dama, "das melhores a melhor", e pelos olhos lhe vai surgir todo o sofrimento, toda a sua coita, que o leva a dizer que morrerá se não a vir.
              Consiste este amor, em suma, numa aspiração e estado de tensão por um ideal de mulher ou ideal de amor.

. Deste modo, o trovador segue de perto a teoria platónica do amor:


              A "senhor" é cheia de formosura, é o tipo ideal de mulher. A sua beleza e o bem que possui são, de acordo com a teoria platónica, uma ideia pura. Ela é uma projecção platónica do Bem, do Belo e da Virtude. O amor cortês apresenta-se, pois, como ideal, como aspiração que não tende à relação sexual, mas surge como estado de espírito que deve ser alimentado.

. Este amor (em geral fingimento e convenção na poesia provençal), na língua galego-portuguesa, parece sincero, numa súplica apaixonada e triste.


. Outras características:
® não totalmente declarado, devido ao seu carácter adúltero;
® com poucas hipótese de ser vivido a nível físico;
® submissão total do EU à dona, numa atitude de vassalagem amorosa;
® fidelidade eterna do EU à dona;
® beleza, altivez e indiferença da dona face ao seu "vassalo";
® sofrimento  -  coita de amor do trovador, de acordo com as regras:
. vassalagem amorosa;
. comedimento na expressão do sentimento amoroso  -  mesura;
. não mencionar o nome da amada  -  o "trobar clus";
. amor faseado:     fenhedor (suspirar);
precador (suplicar);
entendedor (namorar);
drut (amar);
® os artifícios poéticos do enlouquecer e da morte de amor.


. Recursos poético-estilísticos

            1. Forma / Estrutura externa

. Cantiga composta por três estrofes isométricas de 4 versos e um refrão dístico e ainda uma estrofe final dística, que é a finda.
. Rima      - abbaRR;
- interpolada e emparelhada;
- consoante ("ei"/"sei");
- pobre ("ei"/"sei") e rica ("ben"/"ten");
- aguda ou masculina.
. Metro: versos decassílabos.
. Refrão (influência da cantiga de amigo): dístico de versos monórrimos que traduz a ansiedade e do desejo do trovador de ver a dona, bem como a angústia e o desespero que o dominam.
. Finda: conclusão, remate ou assunto da cantiga. Exprime a certeza da morte se não conseguir ver a mulher.
. Atafinda: forma de encavalgamento ou de ligação sintáctica e ideológica entre as estrofes. A ligação é realizada através da repetição de "veer" no fim da estrofe e de "cedo" no início da seguinte.


                        1.1. Outros elementos fónicos

. Transporte: vv. 3-4, 8-9, etc.  -  prolonga o queixume e a mágoa do sujeito.
. Assonância em i, e, a.
. Ritmo predominantemente binário e lento.


            2. Nível morfossintático

. Substantivos [1]:
- "soidade": o sentimento central do trovador em virtude da ausência da dona e que é a matriz dos outros sentimentos  -  dor, desespero, desilusão, tristeza, sofrimento, ansiedade, amor, esperança, admiração, revolta;
- Deus:     ® o responsável pela beleza ímpar da dona;
® o objecto da súplica do trovador no sentido de voltar a ver a amada;
- senhor:     ® o objecto do amor-vassalagem do trovador, o ideal da perfeição;
® a causadora dos sentimentos do trovador, quer pela sua inigualável beleza, quer pela indiferença face ao amor dele.
. Verbos:
. pretérito perfeito: a recordação da época em que conheceu a dona (início da sua coita de amor presente) e os aspectos que o cativaram;
. presente: a coita de amor do trovador e o desejo e a rever;
. futuro ("prouguer" ® futuro do conjuntivo do verbo "prazer"): voltar a vê-la ou a morte se não a vir.
            O verbo ver é bastante expressivo no contexto da cantiga de amor, na evocação visualista da dona e porque remete para a estética da luz:
. O trovador vê-se enredado no amor fatal porque, um dia, viu uma formosa dama "das melhores melhor"; e pelos olhos vai surgir todo o sofrimento. Os olhos intrometem-se nos negócios de amor.
. Ver é ter luz = poder participar do objecto e difundir-se indefinidamente até ao ser amado. A actividade da luz é difundir-se indefinidamente e provocar todos os movimentos.
. Luz  -  do latim lux = esse lucidum (ser lúcido); ou seja, pela luz participa-se de todas as coisas criadas.
. A exploração do simbolismo da luz faz parte da própria estética medieval, que é uma estética da luz.
. Hipérbatos: "Que soidade de mia senhor ei", etc.
. Anáfora: vv. 7, 13, 19.
. Função expressiva:
- substantivos ("soidade");
- verbos ("rogo");
- carácter exclamativo do primeiro verso;
- adjectivos.


            3. Nível semântico

. Hipérboles: a saudade é tamanha que, se não a vir, enlouquecerá e morrerá:
- "se a non vir, non me posso guardar / d' ensandecer ou morrer con pesar";
o encarecimento da dama  -  perfeita, ideal, divinizada, a melhor:
- "non lhi fez par";
- "fez das melhores melhor".
. Antíteses:       - "mi nunca fez ben" ¹ "ensandecer ou morrer con pesar";
- ver  ¹  não ver a dona
   ¯                    ¯
 vida             morte
. Metáforas do "ensandecer" e do morrer de amor.
. Perífrases: o retrato da mulher ideal, perfeita, divinizada, inacessível:
® "ca tal a fez Nostro Senhor:
 de quantas outras no mundo son
 non lhi fez par";
® "se a non vir, non posso viver" (eufemismo).
. Repetição do verbo "fazer": reforça a ideia da superioridade da dama.
. Gradação na expressão dos sentimentos do trovador: sente saudades ® enlouquece ® morre de amor.


. Classificação

1. Cantiga de amor: composição poética trovadoresca de carácter lírico, cujo emissor é um trovador que exprime os seus sentimentos amorosos em relação a uma dama designada por "mha senhor".
            O poeta elogia as qualidades invulgares da mulher amada a nível físico, moral e social e fala do seu sofrimento (coita de amor).

1.1. Formal:
- cantiga de refrão;
- cantiga de finda;
- cantiga de atafinda.





[1] O vocábulo saudade e a sua evolução semântica

. O vocábulo soidade tem na 1.ª estrofe um prestígio sugestivo que se prolonga em:
- nembrar;
- na lentidão do ritmo
   e traduz o sentimento de melancolia que parece realmente vivido.
. Saudade  -  palavra que se repete obsessivamente ao longo da literatura portuguesa:
soidade  -  traduzida em:  ½coitas de amor
½ cuidado
½ pesar
½ morte (de amor)
                O seu emprego literário é anterior ao de soledad, apesar de ambos os vocábulos derivarem da soletatem latina. Já na Idade Média havia em Portugal Marias da Soidade ou Suidade, enquanto em Espanha só depois do século XVII surgem Marias de la Soledad. O valor significativo entre os dois vocábulos é diferente:
soledad ® saudade ½ valor subjectivo-objectivo
® solidão   ½
soidade (sensibilidade portuguesa)  -  valor subjectivo ® saudade.

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